Gostaria de abordar aqui uma questão polêmica, que é a da suposta "origem taoísta" do Xing Yi Quan, Xing Yi Chuan ou Xing Yi Tchuen. Em vários sites e até em certos livros lemos que o Xing Yi, o Ba-Gua e o Tai-Chi são as três "artes internas" do Kung Fu, e que teriam as três artes se originado da cultura taoísta, do lendário templo de Wudang.
Primeiramente, é preciso compreender que não existem "artes marciais exotéricas" (externas) e "artes marciais esotéricas" (internas). Artes marciais são artes marciais. O treinamento de um indivíduo é que pode ser mais focado no externo (exotérico) ou no interno (esotérico).
Os exercícios de Chi Kung, que são voltados para o "desenvolvimento interno" ou seja, o desenvolvimento do Chi, na tradição marcial chinesa, podem servir tanto para a meditação, para melhorar a saúde ou para o simples combate prático direto. E eles existem em todas as artes marciais chinesas conhecidas.
Em segundo lugar, é preciso compreender que a associação entre o aspecto "interno" do treino do artista marcial e o taoísmo, e entre o aspecto "externo" e o budismo não tem nenhum fundamento histórico. Se estudarmos a história dessa duas grandes religiões, todas elas desenvolveram métodos de meditação, respiração e outros que podem ser considerados "internos".
Segundo Brian Kennedy e Elisabeth Guo (2005, p.78 e 80):
“O esquema de classificação entre artes marciais chinesas internas e externas tem causado uma longa série de controvérsias e debates onde e quando é utilizado. De acordo com esse esquema, as artes marciais chinesas ou são externas ou internas, sendo que as externas seriam as mais pesadas, e as internas as mais leves. Essa distinção sustenta-se sobre a idéia de que um sistema de arte marcial irá priorizar ou o desenvolvimento da força externa ou o desenvolvimento da força interna, o que geralmente reduz-se a: esse ou aquele sistema dá ênfase no desenvolvimento do Qui (Chi) ou não? Outras vezes, tal classificação sugere que as artes internas são mais defensivas, ao passo que as externas são mais ofensivas.
Nesse esquema de classificação, artes como o Xing Yi, o Ba Gua e o Tai Chi são os três principais estilos internos. Todos os outros são externos. Isso tem relações com o esquema Wudang versus Shaolim.
O problema com o esquema estilos externos versus estilos internos é que ele é uma falsa dicotomia. Praticantes de Xing Yi utilizam muitos exercícios de força externa. De uma forma similar, o Hung Gar – considerado um estilo externo – possui um sistema de treinamento inteiro, o “Iron Wire Set” devotado ao treinamento interno. Na verdade, qualquer sistema completo de arte marcial chinesa possui elementos de treinamento externo e interno. Além do mais, esse esquema de classificação de artes internas e externas é recente dentro da história, tendo sido utilizado pela primeira vez na era Qing e no período republicano.”
No mesmo livro, os autores observam como esse esquema errôneo de divisão entre "artes internas" e "artes externas" está associado a dois outros esquemas de classificação: a divisão entre estilos do norte e estilos do sul e a divisão entre artes marciais chinesas budistas e taoístas.
Com relação a esse esquema, ele diz (op, cit, p.83):
“Existe um conjunto final de mal entendidos populares. Frequentemente fala-se em livros e artigos sobre “artes marciais taoístas” ou “artes marciais budistas”, sugerindo que existem certas conexões entre religião, filosofia e artes marciais. Por exemplo, o Tai Chi Chuan é geralmente chamado de “arte marcial taoísta” e é por esse motivo associado com a religião como uma corporificação da filosofia taoísta. De uma maneira similar, muitos sistemas marciais de Shaolim são vistos como um método de treinamento religioso budista, um tipo de “meditação em movimento”. Essa idéia, a qual consiste no centro da noção da relação entre artes marciais e pensamento “new age”, é na verdade bastante recente na história, e é oriunda do ocidente. Na era Qing chinesa, as artes marciais eram vistas simplesmente como técnicas não muito diferentes das técnicas de um pedreiro. Eu tenho a forte impressão de que se você perguntasse para qualquer artista marcial da era Qing se existem artes marciais taoístas ou budistas ele olharia para você como se você fosse louco. Sua resposta provavelmente seria “artes marciais são artes marciais, religiões são religiões, e as duas não tem conexão”. E ele estaria certo. Para fazer uma analogia, imagine aproximar-se de um caçador e perguntar “essa sua Winchester calibre 30 é um rifle protestante ou católico?”. Como os artistas marciais da era Qing, ele poderia considerá-lo louco. Existem muitas maneiras de categorizar um rifle: ação leve ou ação pesada, automático ou semi-automático, por exemplo. Categorizá-lo como religioso ou filosófico não teria sentido nenhum (...)"
"Esse esquema de classificação é de inspiração muito mais romântica do que baseado na realidade. Embora seja verdade que as montanhas Wudang foram lar para um grande número de templos taoístas, é igualmente verdade que nenhum dos três estilos chamados de taoístas (Xing Yi, Ba Gua e Tai Ji) tiveram o seu desenvolvimento nessa região. Da mesma forma, embora exista um templo Shaolim, é incorreto dizer que ele é o local de origem e de desenvolvimento de todas as outras artes marciais chinesas além das três supostamente atribuídas como originárias de Wudang." (p.83)
"Esse esquema de classificação foi usado pela primeira vez pela Academia Nacional de Kuoshu em 1920 como uma maneira genérica de divisão para os muitos sistemas de artes marciais que estavam sendo ensinados no interior de dois grandes grupos. Como a vertente supostamente atribuída a Wudang (O Tai Chi, o Ba Gua e o Xing Yi) tornaram-se um dos grupos é uma história complicada. A maior parte dos motivos que levaram a isso devem-se às relações de amizades entre mestres e aos laços e vínculos de
lealdade que levaram à criação de um grupo no final do século 19, cujos membros nomearam a si mesmos como professores das “artes marciais de Wudang."
No caso do Xing Yi Tchuen, a figura histórica que fazia parte desse grupo era um mestre de Xing Yi chamado Sun Lu Tang.
Sun Lutang (1860-1933) era um grande estudioso dos classicos Confucionistas, do I Ching e do Tao Te King. Ele foi para as montanhas de Wudang em 1894 para estudar a filosofia Taoista e metodos de auto-cultivação (exercicios de Chi Kung taoistas). Nessa época (fim do sec. XIX) as montanhas de Wudang era um dos centros mais conhecidos e importantes para o estudo do Taoismo. Sun Lu Tang mesclou então varias ideias e conceitos do Taoismo com o Xing Yi Tchuen, e também com o Tai Chi e o Pa-Kua. Assim, por exemplo, as técnicas elementares dos cinco punhos, presentes no currículo básico de qualquer praticante de Xing Yi, tornaram-se uma metáfora dos cinco elementos da cosmologia esotérica taoísta, e assim por diante.
Outro que apoiou e ajudou muito Sun Lutang foi Li Cun Yi, que era "irmao" de Sun Lu Tang pelos dois terem aprendido Xing Yi Tchuen com Li Luoneng. Os dois formaram um grupo com outros mestres de Tai Chi e Ba-Gua para adotar a ideia que esses estilos eram internos, eram relacionadas ao Taoismo e que vinham do Templo Wudang, para se distiguirem das outras escolas de artes marciais chinesas que existiam na época. Isso se propagou pelos anos 20 e 30, com varios livros citando essas idéias: Baguaquan Xue (Estudo do Boxe de Bagua), Bagua Jian Xue (Estudo da Espada Bagua), Xingyiquan Xue (Estudo do Boxe Xingyi), Tajiquan Xue (Estudo do Boxe Taiji) e Quanyi Shuzhen (Explicacao da Essencia do Boxe), etc. A partir daí, das observações contidas nesses livros, escritas por Sun Lu Tang, seus alunos e dmiradores começaram a propagar a falsa história que o Xing Yi o Ba-Gua e o Tai Chi teriam tido sua “origem” no templo de Wudang.
Claro que Sun Lu Tang e Li Cun Yi se inspiraram em um precursor para fazer relações entre arte marcial e esoterismo. Um mestre mais antigo chamado Chang Naizhhou (1724-1783) começara antes deles a fazer certas conexões entre os conceitos de Chi e as teorias do I Ching. O livro que ele publicou (em 1781) tinha duas partes, Peiyang Zhong Qi Lun (Teoria de Nutrir o Qi Central) e Wubei Cankao (Referencias Marciais). Ele criou o sistema Chang Shi Wuji (Boxe da Familia Chang) usando o conceito de Zhong Qi (Qi Central) como a ideia principal do sistema.No entanto, ele ainda pregava o uso marcial das artes marciais chinesas, e não sustentava a idéia de que um artista marcial poderia desenvolver arte marcial focando-se apenas nos exercícios para desenvolvimento "interno".
Mesmo Sun Lu Tang, apesar de ter estudado em Wudang e relacionado arte marcial com taoísmo, nunca pregou que a arte marcial por si só pudesse conduzir alguém à iluminação espiritual, ou que devesse se limitar a uma prática terapêutica voltada apenas para ter boa saúde. O que ele pregava, pelo contrário, é que era importante nao só aprender o lado civil (wen), por estudos e pesquisa, como tambem o lado marcial (wu) por pratica e aplicação. Mesmo assim, passou a ser erroneamente visto por muitos como o introdutor da idéia da prática das Artes Marciais apenas para a saúde.
No mesmo livro citado acima, Brian Kennedy e Elisabeth Guo afirmam:
(...) A verdadeira base da divisão Shaolim versus Wudang foi simplesmente a formação de um grupo que incluísse as crenças religiosas de Sun Lu Tang e de Li Cun Yi. Eles precisavam de uma simbologia para distinguir eles e seus sistemas de artes marciais de outros grupos e sistema. O rótulo que utilizaram para isso foi arbitrário.”
Dessa maneira, Sun Lu Tang e Li Cun Yi inventaram que o Tai Chi, o Pa Kua e o Xing Yi eram três artes marciais originadas do templo taoísta de Wudang, e ligadas à cultura taoísta. Mas inventaram essa inverdade para criar um "mito fundador" que os ajudasse a propagar a metodologia de ensino e a abordagem de sua escola, e não para que essa ficção fosse divulgada até os dias de hoje e passasse a constar em livros e sites como se fosse a verdadeira versão dos fatos.
Não é difícil compreender porque essa idéia da relação entre arte marcial e espiritualidade tornou-se tão popular, tão propagada e até os dias de hoje desperte tantos interesses.
O historiador Stanley Henning (1981) afirma:"a ênfase no “espiritual” nas artes marciais parece ter crescido nas mentes das pessoas na mesma proporção da diminuição da relevância de seu propósito original”.
Ainda segundo Kennedy e Guo (op cit, p.85):
"A idéia de que as artes marciais chinesas estejam ligadas às filosofias budista e taoísta surgiu quando as artes marciais perderam o seu uso prático, e começaram a ser praticadas como uma forma de recreação para as classes média e alta. Esse processo começou no final do seculo 19, e acelerou-se com o início da era Republicana (1912)." (...) Para melhorar a imagem de suas artes, professores começaram a relacionar o estudo da filosofia chinesa com o estudo e a prática de seus estilos. (...) Essa mistura entre filosofia e exercícios para a saúde tornaram as artes marciais mais palatáveis e atraentes para a classe média chinesa emergente nos anos de 1900."
Assim, o misticismo e a espiritualidade apareceram como elementos que se agregaram às artes marciais à medida em que o seu caráter mais pragmático, voltado para o uso prático nas guerras, perdeu gradualmente a sua relevância para as classes mais altas e favorecidas. Em paralelo a isso, uma série de tradições e mitos foram inventados com o intuito de promover a prática das artes marciais como algo aceitável dentro do estilo de vida burguês, moderno e civilizado.
Essa articulação entre artes marciais e esoterismo "new age" enquadra-se dentro daquilo que o sociólogo alemão Norbert Elias chamou de o "processo civilizador". Associar por exemplo o Xing Yi Tchuen ou o Tai Chi Chuan com a busca pela espiritualidade pode ser visto como uma manifestação desse impulso civilizador.
Para Elias (1994, p.23) "O conceito de "civilização" refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível de tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às idéias religiosas e aos costumes."Ainda de acordo com Elias (1994, p.202) "a questão por que o comportamento e as emoções dos homens mudam é, na realidade, a mesma pergunta por que mudam suas formas de vida".
Como aponta Brandão (2001, p.98) “Na teoria dos processos de civilização de Elias, constitui um erro querer separar as transformações gerais sofridas pelas sociedades e as alterações ocorridas nas estruturas de personalidade dos indivíduos que a forma”.
Originalmente, como diz Elias (1994, p.193) "o medo reinava em toda a parte e o indivíduo tinha que estar sempre em guarda". Com o passar do tempo, a sociedade se civilizou, e a violência cotidiana presente nos tempos mais antigos cedeu lugar, gradualmente, a um controle cada vez mais rígido dos impulsos agressivos ou de violência. Dessa maneira, estando as artes marciais encontram-se inseridas dentro da sociedade chinesa do final do século XIX e início do século XX, elas tenderam a acompanhar todo o conjunto de mudanças do modo de vida. Elas passaram a incorporar os códigos determinados dentro dessa sociedade para o gradual controle da violência, introduzindo preceitos e costumes aceitos dentro de espaços sociais específicos, sob a forma de valores, para se tornarem mais aceitos pela dinâmica da sociedade. Assim, algumas artes marciais chinesas tiveram uma clara tendência à desportivização, enquanto outras, por outro lado, tenderam para esse envolvimento com misticismo religioso e/ou esotérico, ligadas à idéia de cuidados com o corpo para a obtenção de uma maior espiritualidade. Ou seja, a gradual sublimação de gestos violentos ocorrida no conjunto mais amplo da sociedade teve como efeito, nessas artes, as adaptações necessárias para elas poderem serem aceitas ao longo do século XX. Essa "adaptação" de práticas de combate que se tornaram esportivas ou terapêuticas pode se justificar nas mudanças ocorridas na sociedade, onde muitas das técnicas utilizadas, sejam com armas, sejam com o próprio corpo, tornaram-se obsoletas.
No entanto, a partir dessa tendência à esoterização de algumas artes marciais, foram criadas, com o intuito de sustentar um imaginário poderoso e convincente, uma série de inverdades do ponto de vista histórico, que se perpetuam até os dias de hoje. A maior delas é a noção de "origem", que pretende situar a religiosidade taoísta ou budista como sendo a essência mais profunda desse ou daquele sistema de arte marcial. O que na verdade ocorre aqui é um inversão: não é o sentimento ou impulso religioso que vem primeiro e em segundo vêm as técnicas de artes marciais. São as artes marciais que, inventadas primeiro, passam depois a serem, em alguns contextos muito específicos e situados, relacionadas a certas crenças religiosas pessoais. No caso do Xing Yi Tchuen, ocorreu que apenas no final do século XIX, especificamente, foi feita essa co-relação entre Xing Yi e taoísmo. Antes dessa época, essa co-relação não existia.
A partir de determinadas interpretações equivocadas, no entanto, muitas pessoas pensam hoje em dia ser o Xing Yi Tchuen uma "arte interna taoísta", cujo treinamento inclui algum tipo de método mágico ou misterioso, ou que seja focado apenas nos exercícios respiratórios (Chi Kung), na meditação e em técnicas de visualização ou mentalização. Ignora-se o imenso repertório motor e a grande quantidade de técnicas de combate e de luta existentes nessa arte, que só podem ser compreendidas quando o Xing Yi é treinado como uma arte marcial, com abordagem também "externa".
Referencias
BRANDÃO, Carlos da Fonseca. A teoria dos procesos de civilização e o controle das emoções. Revista Conexões, v.6, 2001. UNICAMP-SP.
ELIAS, Norbert. O processo Civilizador Vol. 1: Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
HENNING, Stanley. The Chinese Martial Arts in Historical Perspective, Military Affairs, Dez. 1981
KENNEDY, Brian. and GUO, Elisabeth. Chinese Martial Arts Training Manuals: a Historical Survey, North Atlantic Books, U.S., 2005.
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